Warhol, Pessoas e Coisas
Warhol, Pessoas e Coisas é uma extensa exposição dedicada a Andy Warhol e à sua influência sobre várias gerações de fotógrafos, cineastas, músicos e artistas multimédia. Inclui obras de Warhol, trabalhos dos seus amigos mais próximos, bem como encomendas e intervenções de artistas contemporâneos de Nova Iorque, Lisboa e Porto. Este projecto resulta da colaboração entre a Mishkin Gallery / Baruch College da City University of New York (CUNY) e a Casa São Roque, Porto.
Procura-se agora mostrar o legado menos conhecido de Andy Warhol: a importância do seu contributo para o desenvolvimento da media art, tratando de examinar como os seus métodos e gestos inspiraram a revisão do objecto e do sujeito, como redefiniram a relação entre as pessoas e as coisas e como expandiram o conhecimento sobre a vida social.
A arte pop e a produtividade da colectivamente gerida Factory de Warhol alterou toda a atmosfera do grande consumismo, oferecendo um espelho à sociedade capitalista, introduzindo numa nova dinâmica auto-reflexiva a produção e a apropriação das imagens, as mercadorias e o fetichismo com os seus ícones. Calado e tímido, Warhol encorajou todos a fazer arte – dizendo “qualquer um pode ser um artista”. Criou assim uma controversa “escultura social” em grande escala, abrangendo um enorme grupo de colaboradores, actores, modelos, co-autores – desde celebridades e elites até pessoas da classe trabalhadora ou marginalizadas, representando minorias e o underground queer. Ao longo da sua carreira, Warhol moveu-se entre diferentes media, no entanto, as suas polaróides, fotografias e filmes permanecem à margem da sua obra mais conhecida, múltiplos e serigrafias. Warhol experimentou, já nos anos 50, o meio da fotografia instantânea, a Polaroid. A primeira impressão que preservou, de 1958, retrata o fotógrafo Edward Wallowitch, figura pública e seu colaborador. Warhol utilizou, como muita gente, as famosas Polaroid Land Camera e Polaroid Big Shot, mas só nos anos 70 adoptou esta técnica para produzir imagens coloridas e originais nos seus retratos, em vez da técnica de recortes de jornal utilizada nos seus trabalhos anteriores. A maior parte das suas polaróides foram posteriormente utilizadas em grande escala, serigrafadas em telas. Cada uma é uma impressão única, um testemunho da “performance instantânea”, do encontro entre o modelo e o fotógrafo.
O núcleo da exposição da Casa São Roque consiste numa selecção das 38 polaróides coloridas de Warhol, de 1972 a 1986, e 40 impressões a preto e branco em prata coloidal de 1980–1986 pertencentes à colecção da Galeria Mishkin / Baruch College, City University of New York (CUNY), doadas pela Andy Warhol Foundation for the Visual Arts para fomentar bolsas de estudo sobre o seu trabalho. Nunca tendo sido apresentadas em Portugal, estas obras viajam agora para a Europa pela primeira vez. Esta é a segunda exposição de Warhol no Porto, após Andy Warhol: A Factory, realizada no Museu de Serralves em 2000. Curiosamente, a Fundação Cupertino de Miranda, em Vila Nova de Famalicão, apresentou, em 1998, uma vasta selecção das polaróides de Warhol na exposição Do banal, do cómico e do trágico, com curadoria de Miguel von Hafe Pérez, onde o público pôde ver os auto-retratos de Warhol como Drag da década de 80, bem como as Exposures Portfolio da década de 70. A colecção de polaróides do Baruch College, CUNY, agora apresentada, inclui pessoas anónimas e objectos: adultos, crianças, sapatos, chaves; inclui também celebridades: a cantora Dolly Parton, o actor Sylvester Stallone, Maria Cooper Janis (artista e produtora, filha de Gary Cooper), Sean Lennon (músico, filho de John Lennon e Yoko Ono), ou a Princesa do Irão Ashraf Pahlavi. Há também um grupo de 4 polaróides de Bracka Weintraub (Bronka Rabin) com uma forte maquilhagem branca, uma interessante figura de origem judaico-polaca e a esposa de Jacob D. Weintraub, galerista, marchand de arte moderna e autor de Jacob’s Ladder: From the Bottom of the Warsaw Ghetto to the Top of New York’s Art World, ambas posteriormente retratadas por Warhol em grandes serigrafias. Há também um retrato de 1974, Lurdes, que faz parte da importante série de Warhol Ladies and Gentlemen que se refere à dualidade de género que as drag queens representam. As impressões íntimas e pouco conhecidas em prata coloidal incluem: Blondie Concert Backstage (1982), paisagens da cidade, naturezas mortas, nus masculinos e culturistas, Sylvester Stallone com uma desconhecida, amigos de Warhol: Margaux Hemingway com bolo de aniversário, Pia Miller fotografada numa recepção, o seu parceiro Jon Gould em vários locais e viagens, o fotógrafo Christopher Makos e trabalhadores fundamentais da Factory, como Fred Hughes e Sam Bolton.
Warhol, Pessoas e Coisas inclui filmes experimentais, obras-primas de Warhol: Kiss (1963–1964), retratando durante 58 minutos vários casais a beijarem-se e, em ecrã duplo, The Chelsea Girls (1966), gravado no Chelsea Hotel e na Factory, com Nico, Ondine, Gerard Malanga, Mary Woronov, Marie Menken, Mario Montez, Ingrid Superstar, entre outros, e música dos Velvet Underground. Este filme foi montado a partir de 12 bobinas (tanto a cores como a preto e branco) combinadas em ecrãs paralelos, com diferentes acções a decorrer em cada um deles, formando 204 minutos únicos, teatrais e hipnóticos. Nesta exposição, também é apresentado o episódio 9 da Andy Warhol TV Productions, de 1983. Mostra Jean-Michel Basquiat como um exemplo das suas colaborações intergeracionais.
Os filmes de Warhol entram em diálogo com o cinema underground de Nova Iorque dos anos 60, com cineastas como Jonas Mekas, Stan Brakhage ou Paul Morrisey. Warhol participou em sessões da Film-Makers’ Cooperative no apartamento de Mekas e assistiu à formação dos Anthology Film Archives. Mekas emprestou-lhe a câmara várias vezes e compôs o plano para o Empire de Warhol, realizado em conjunto com John Palmer e Marie Menken, que estava a ensinar Warhol a usar a câmara de mão Bolex de 16mm. Por sua vez, o próprio Warhol foi tema do diário pessoal filmado por Jonas Mekas entre 1965 e 1982, que levou à criação de Anthropological Sketches: Scenes from the Life of Andy Warhol: Friendships & Intersections, de Mekas (editado em 1990, na versão apresentada na Casa São Roque). Representa de forma poética, com câmara dinâmica, reuniões e eventos privados, acompanhados pela música da performance dos Velvet Underground, de 1966, através da exposição de Warhol no Museu Whitney, em 1971, pela dumpling party-performance de George Maciunas, com a participação de John Lennon, Yoko Ono e outros, Warhol no seu estúdio fazendo retratos polaróide de Evelyn Kuhn em 1976, comprando legumes e frutas no mercado de Union Square, passando férias em Montauk com Lee Radziwill e a sua família e as ondas do oceano Atlântico acompanhadas por um registo sonoro, de 1987, da missa em memória de Warhol na catedral St. Patrick.
Jeff Preiss, herdeiro do cinema underground e do legado cinematográfico estrutural, é especialista em montagem hipnótica e em retratar pessoas. O seu trabalho inspira-se no método diarístico de Mekas e no uso poético da câmara Bolex. Para a exposição da Casa São Roque, Preiss contribui com três obras desenvolvidas a partir de registos analógicos transferidos para ficheiros digitais. O seu mais recente filme de viagens Welcome to Jordan (2022) foi editado a partir de um filme doméstico realizado durante a sua visita a Wadi Rum e posteriormente passado para canais de cor desvinculados, parecendo camadas sobrepostas, serigrafias deslocadas. 14 STANDARD 8mm REELS 1981–1988 (2018) reúne as suas obras dos anos 80, recentemente preservadas pelo Anthology Film Archives e por The Andy Warhol Foundation for the Visual Arts. Cada bobina é dedicada a uma pessoa: Zeena Parkins, Peter Hutton, Saul Levine, Chet Baker, Rebecca Quaytman, entre outras. STOP (2012) é uma crónica de longa duração filmada entre 1995 e 2011. Organizada sequencialmente, funciona de acordo com as convenções dos filmes domésticos: há temas que se repetem em ciclos enquanto outros formam episódios isolados, por exemplo, Londres durante o funeral da Princesa Diana, o programa de três anos da galeria Orchard, os acontecimentos do 11 de Setembro e a consequente atmosfera chocante da cidade de Nova Iorque. Mas como na tradição clássica dos filmes domésticos, o tema central no STOP é o filho de Jeff Preiss, desde criança à adolescência, que no final do filme declara o direito à autodeterminação do género.
Durante cerca de trinta anos, John Miller optou por fotografar entre o meio-dia e as 14h, tempo de pausa a meio do dia de trabalho. Iniciada em 1994, a série The Middle of the Day é um projecto documental contínuo, que reflecte a tensão entre a câmara enquanto apparatus e o desenrolar da vida quotidiana. Miller começou por utilizar a câmara analógica, mais tarde a digital e, durante três anos, a do telemóvel. Este projecto pode ser visto, de forma irónica, como uma tentativa de recuperar o meio-dia para uma produção (estética) total. Miller está interessado em “documentar algo intangível, algo invisível e algo que só se pode unir a uma imagem após ter sido inserido num sistema: o problema da valorização”. A instalação preparada para a Casa São Roque consiste em slideshows, imagens capturadas em cidades como Nova Iorque, Berlim, Palma, Paris, Copenhaga, Susch e Łódź, entre 2019 e 2022. Como homenagem a Warhol, Miller parte de uma citação dos Diários de Andy Warhol para intitular a primeira publicação desta série: “Foi um belo dia nos anos 70. No parque, observava pessoas em pauzinhos de Pogo”.
Tony Cokes, especialista em música pop e nos seus efeitos na história e na sociedade, apresenta um ensaio cinematográfico Untitled (m.j.: the symptom) (2020), no qual propõe um protocolo diferente para a leitura de um texto, apresentando faixas musicais com vozes fragmentadas e batidas, o filme acompanha o complicado legado de Michael Jackson, que durante anos reapareceu no trabalho de Cokes. Tal como Warhol, Jackson representou frequentemente a sua identidade: straight/queer ou white/black, conforme as exigências da sociedade e da indústria. Jackson foi também retratado por Warhol para a capa da revista Times, em 1984, nos seus melhores tempos, os de Thriller. Untitled (m.j.: the symptom) é um exemplo recente da linguagem cinematográfica típica de Cokes, que decidiu retirar a imagem deixando apenas o texto e a cor – como resultado de um processo contínuo de redução da imagem, iniciado em 1999 com a série Pop Manifestos.
Anna Ostoya contribui com Memorabilia (2021/∞), uma série contínua de fotomontagens realizadas a partir de imagens encontradas na internet. Trata-se de um diário associativo no qual a artista junta imagens que parecem iguais, mas que pertencem a contextos diferentes ou a visões do mundo opostas, criando um efeito de déjà vu. Explosions (2022) mostra uma imagem de torres gémeas a arderem em Sarajevo e uma imagem das torres gémeas a arderem em Nova Iorque. Coalitions and Members reúne duas fotografias históricas de 1969 – uma, de membros de um movimento de direitos civis anti-racista, em Chicago, outra de Andy Warhol com colaboradores da Factory, em Nova Iorque. Algumas baseiam-se em paralelos visuais entre obras de arte consagradas e imagens de notícias como em Eye, onde o plano do olho cortado de Un Chien Andalou, de 1929, é associado a uma imagem recente do olho de um homem do Afeganistão a ser scaneado com um dispositivo biométrico ou uma cadeira de exame num consultório de procriação assistida de Illinois associada a Little Electric Chair de Andy Warhol, de 1964–1965. A estratégia das semelhanças visuais, ainda que uma justaposição contextual, é o método “pseudomórfico” de Ostoya que lhe permite questionar o significado e o valor das imagens, a sua importância geográfica e temporal.
Em vez de retratar pessoas, Eileen Quinlan capta os brinquedos dos filhos em polaróides de fabrico caseiro, em composições de contexto doméstico, resultantes da constante transformação das brincadeiras das crianças, apresentando o processo de seriação, o acaso e a potencialidade artística característicos dos brinquedos populares, produzidos em massa, Magna-Tiles. Apresentam-se, agrupadas e enquadradas, 24 polaróides, incluindo First Things First e Gravity Fails (2022), na sequência da sua série anterior conhecida como Play Time. Mostram as imperfeições técnicas e os erros das impressões impermanentes das polaróides, destacando as partes abstractas resultantes dos erros da impressão instantânea e do processo químico. Parecem testes, pequenos protótipos de uma produção maior e desconhecida.
Pedro Magalhães, conhecido pelos seus arquivos fotográficos analógicos e digitais que documentam a gentrificação do Porto durante várias décadas (desde 2008), incluindo a cena nocturna do Porto, contribui aqui com a instalação site-specific I Don’t Speak Guitar (2022), um título que cita, ironicamente, Patti Smith e a sua reflexão sobre a capacidade de tocar um instrumento e o uso da guitarra como objecto comunicativo. Esta instalação expande-se por toda a Casa São Roque, onde foi gravada, e consiste em música, ruído, performance, vídeo, objectos, polaróides e colagens de fanzine – homenageando os Velvet Underground, o Warhol e a vanguarda de Nova Iorque. Curiosamente, enquanto jovem estudante do departamento de Engenharia Mecânica da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), Magalhães trabalhou no Museu de Serralves e, em 2000, chegou a fazer parte da equipa de montagem da exposição Andy Warhol: A Factory, onde aprofundou a sua visão sobre o trabalho de Warhol e começou a desenvolver a sua arte multimédia.
Sara Graça, a mais jovem participante de Warhol, Pessoas e Coisas, joga desde há algum tempo com as regras no mercado da arte e com a alta e a baixa cultura, com os modos de produção da arte, mercadorias domésticas e de massa, inspirando-se na arte pop materialista e nas estratégias de Warhol, tal como foram desenvolvidas por Jörg Heiser em Double Lives in Art and Pop Music. Graça contribui com várias intervenções no interior da exposição, utilizando múltiplos Pratos de Papel, uma instalação 50/50 que consiste em self-made ímanes recortados no frigorífico e esculturas em cartão, uma continuação da sua série No Inferno às 9. Representam personagens que indagam depois de saírem do bar, podendo estar à procura de uma after-party. Os seus pratos de papel dourado brilhante e os seus vestígios “são como anjos baratos espalhados por toda a casa”. Querem parecer glamorosos como o palacete. Aproximamo-nos e reconhecemos a nossa cara distorcida, então percebemos que eles são apenas um artigo barato, produzido em massa, talvez restos da festa da noite anterior. Graça está a perguntar: “quem nos irá servir esta noite?”
A exposição apresenta ainda importantes fotografias da colecção da Casa São Roque, incluindo a série Ferrari (1999), de Augusto Alves da Silva, que retrata vários aspectos da mercadoria fetichista dos carros vermelhos, e, também, Ken Moody (1984), de Robert Mapplethorpe, um dos seus retratos íntimos, nus masculinos negros com a flor branca.
Warhol, Pessoas e Coisas inclui um programa público com uma palestra da investigadora de fotografia Susana Lourenço Marques (Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto) e uma palestra da historiadora de arte lituana Inesa Brasiske sobre a relação entre Andy Warhol e Jonas Mekas.
Curadoria de Alaina Claire Feldman e Barbara Piwowarska
Exposição: 22.05.2022 – 31.01.2023